Aposentadoria compulsória do magistrado como adequada pena disciplinar - por Frederico Mendes Junior

Rômulo Cardoso Quarta, 19 Outubro 2022

É de conhecimento da comunidade jurídica que as garantias do Poder Judiciário não são benesses à figura do magistrado. O plexo de direitos e garantias da magistratura são voltados à defesa da própria sociedade.

 

Ao Poder Judiciário — como um dos poderes da República — compete aplicar a lei aos casos concretos, em substituição às partes, de modo a resolver conflitos com força definitiva e pacificar a sociedade.

 

Além disso, a atual compreensão constitucional das funções modernas do Poder Judiciário passa pelo entendimento de sua funcionalidade como instrumento de tutela de direitos fundamentais dos cidadãos, da garantia do Estado Democrático de Direito e da força normativa da Constituição[1].

 

O Poder Judiciário é uma porta que sempre está aberta ao cidadão e, por isso, toda a intelecção de sua estruturação, composição e funcionamento deve estar calcada no interesse coletivo.

 

Em razão do seu papel constitucional, para melhor acautelar a sensível função de julgar, a qual, não raro, desagrada diversos setores da sociedade, é preciso que sejam estabelecidas determinadas garantias em favor da magistratura.

 

Na acepção sempre atual de Pedro Lessa, "importa garantir o Poder Judiciário, defendendo-o da pressão, das usurpações e da influência dos outros poderes políticos. Para isso é mister organizar de tal modo a magistratura, que, em vez de ficar dependente do Poder Executivo, constitua ela um freio a esse poder".[2]

 

Vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos (artigo 95) asseguram a independência funcional do magistrado, sobretudo, em relação ao Poder Executivo. São medidas destinadas a manter íntegra a imparcialidade do julgador.

 

Estes breves apontamentos não têm por objetivo esmiuçar as garantias mencionadas. A ideia do texto é destacar um dos temas envolvendo a carreira da magistratura que mais gera controvérsia: a aposentadoria compulsória de magistrados como pena disciplinar.

 

Longe da defesa da impunidade de juízes que eventualmente se desviam do cumprimento da lei, é preciso desmitificar o tema a partir de uma filtragem constitucional que posicione a Constituição como fonte do processo hermenêutico.

 

É interessante, nesta quadra, a lição de Eros Grau no sentido de que não se interpreta a Constituição em tiras, aos pedaços. A interpretação de qualquer norma da Constituição impõe ao intérprete, em qualquer circunstância, "o caminhar pelo percurso que se projeta a partir dela – da norma até a Constituição. Uma norma jurídica isolada, destacada, desprendida do sistema jurídico, não expressa significado normativo nenhum."[3]

 

A PEC nº 163/12, apresentada pelo deputado Rubens Bueno e pelo ex-deputado Arnaldo Jordy, pretende suprimir do texto constitucional a pena disciplinar de aposentadoria compulsória com salário proporcional ao tempo de serviço, aplicável a magistrados.

 

A proposta de emenda mencionada é incompatível com a Constituição por diversos motivos.

 

Poderia estar o leitor a se perguntar, diante do que precedentemente anotado: em que medida a mantença da aposentadoria compulsória como medida disciplinar estaria a tutelar a sociedade, e não a figura do magistrado malfeitor?

 

Há uma compreensão constitucionalmente inadequada da temática da aposentadoria compulsória que passa ao largo do caráter contributivo da previdência e, ainda, sobre a inviabilidade constitucional de se implementar, em favor do Estado, um enriquecimento indevido. É preciso dissociar a punição (aposentadoria) do efeito patrimonial decorrente das contribuições que o magistrado, ao longo dos anos, realizou em favor do sistema previdenciário estatal.

 

Eventual ilícito praticado por magistrado deve ser apurado e, se comprovado dentro do devido processo legal, punido na forma da lei, sem exceção. A magistratura nacional não se compraz com desvios éticos e crimes que possam vir a ser praticados por magistrados.

 

Nesse ponto, há um discurso inverídico no sentido de que o corporativismo toma conta da temática no âmbito interno da magistratura, como se os juízes e as juízas brasileiros fossem a favor de beneficiar servidores malfeitores, que se desgarram do compromisso de cumprir a Constituição.

 

O abandono da visão reducionista do tema demanda um avanço no processo hermenêutico e na intelecção do todo da Constituição. Não é possível uma confusão conceitual que pretenda, para além da penalização de perda do cargo — adequada a situações graves de desvio funcional —, avançar para suprimir um direito adquirido assentado sobre o sistema constitucional contributivo da previdência.

 

A aposentadoria compulsória é com proventos proporcionais ao tempo de contribuição. Trata-se de um benefício previdenciário estritamente limitado ao tempo em que o magistrado houver contribuído ao sistema. No âmbito administrativo, a sanção disciplinar, por imperativo lógico, não pode alcançar o direito de o magistrado perceber proventos proporcionais, pois decorrentes das contribuições vertidas ao sistema previdenciário ao qual vinculado o magistrado.

 

O Estado recebeu mês a mês contribuições previdenciárias e com base nisso foi estruturado o regime proporcional a que tem direito agente público quando é aposentado compulsoriamente.

 

Caso o ilícito cometido e que determinou a sanção de aposentadoria compulsória com proventos proporcionais seja grave, poderá ensejar perda definitiva do cargo mediante sentença judicial, observado o devido processo legal.

 

Se não bastasse a questão da inconstitucionalidade material acima apresentada, há inconstitucionalidade formal da PEC 163/12 decorrente do vício de iniciativa. Nos termos da Constituição da República, Lei Complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura.

 

A expressão "estatuto da magistratura" versa sobre a disciplina legal que engloba não apenas deveres, compromissos, encargos, ônus e vedações a que estão sujeitos os membros da Magistratura Nacional, mas, de igual modo, as suas respectivas garantias, prerrogativas e direitos, dentre eles, o direito à aposentadoria proporcional atacada pela PEC citada.

 

Portanto, a sanção disciplinar — aposentadoria compulsória com vencimentos proporcionais ao tempo de serviço, prevista no artigo 42, V, da Lei Complementar nº. 35, de 1979 — encerra matéria afeta ao Estatuto da Magistratura, cuja iniciativa é do Supremo Tribunal Federal, nos termos do caput do artigo 93 da CR/88.

 

As garantias da magistratura integram as chamadas cláusulas pétreas da Constituição, que não são suscetíveis de alteração pelo constituinte derivado.

 

A todo operador do direito incumbe a defesa da mantença integral do sistema constitucional que envolve a carreira da magistratura, especialmente o conjunto de matérias abarcadas pelo Estatuto da Magistratura, sob pena de violações pontuais do texto constitucional virarem regra e, com isso, vulnerarmos ainda mais a carreira da magistratura.

 

A vulneração da magistratura é a própria desestabilização do Estado democrático de Direito e, por consequência, da democracia. Não há falar-se em democracia sem defesa de direitos e sem o pressuposto que é o Poder Judiciário independente.

 

Um Judiciário forte é capaz de resistir a quaisquer tipos de tensões e, com o espeque na lei e em especial na Constituição, restaurar direitos e posições jurídicas. Ao contrário, um Judiciário fraco, para além de desestruturação de um dos poderes da República, representa um retrocesso na defesa e garantia dos direitos fundamentais.

 

*Frederico Mendes Junior é juiz de direito da 1ª Vara da Fazenda Pública de Maringá (PR). Foi presidente da Amapar (Associação dos Magistrados do Paraná), por dois mandatos, e procurador jurídico do município de Maringá.

 

Artigo publicado na Revista Consultor Jurídico, 13 de outubro de 2022. 

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BIBLIOGRAFIA
FACHIN, Zulmar. Funções do Poder Judiciário na Sociedade Contemporânea e a Concretização dos Direitos Fundamentais. Disponível em: <http://www.anima-opet.com.br/pdf/anima1/artigo_Zulmar_Fachin_funcoes.pdf>. Acesso em 09 set. 2022.

GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do Direito. São Paulo: Malheiros, 2002.

LESSA, Pedro. Do Poder Judiciário. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2003.

[1] FACHIN, Zulmar. Funções do Poder Judiciário na Sociedade Contemporânea e a Concretização dos Direitos Fundamentais. Disponível em: <http://www.anima-opet.com.br/pdf/anima1/artigo_Zulmar_Fachin_funcoes.pdf>. Acesso em 09 set. 2022.

[2] LESSA, Pedro. Do Poder Judiciário. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2003, p. 1.

[3] GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do Direito. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 34

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